chocar o luto
entre o ovo e o vazio
releio nossas palavras dos últimos meses
antes de você me abandonar.
tento encontrar algo que indicasse que, em breve,
você já não estaria aqui —
alguma mensagem subliminar,
uma dica qualquer que pudesse me preparar para a sua falta.
algo que permitisse a tão falada — e fadada — aceitação,
que me libertasse,
que me empurrasse ao voo da sublimação.
mas, como uma galinha,
estou presa ao chão.
tenho as asas,
tenho as penas,
tenho a vontade de partir,
mas luto é força gravitacional,
é ovo,
precisa ser chocado.
encontro paz na leitura
que ainda posso fazer daquilo que sobrou de você pra mim.
uma paz desconcertante —
ali está você, completamente disponível,
me dizendo que íamos superar o tempo de distância,
a falta de presença.
mal sabia eu,
mal sabia você,
que a falta seria pra sempre minha companhia constante,
e que saudade seria pra sempre
você e eu.
sei que você não sente mais nada,
mas eu sinto muito.
se você permanece em algum lugar
que não seja dentro de mim,
te digo —
eu sinto tanto.
caminho dentro do viveiro
no ímpeto de liberdade desse luto tão rasteiro.
quero fazer do que nós fomos
algo que ressignifique esse meu abandono:
como reescrever nossa história
sem defini-la a partir da dor que me consome?
me empurra nesse precipício —
quero ver quem é essa eu depois de você.
me empurra desse precipício —
quero te encontrar em outra dimensão.
por aqui mesmo,
mas não aqui exatamente,
nesse não-lugar de suspensão.
quero chocar o ovo
e atravessar esse viveiro.


